Por vezes, deparo-me a divagar sobre os inúmeros defeitos (se assim posso dizer) dos cabo-verdianos, meu amado povo. Digo amado porque, embora continue a ser um povo acéfalo em muitos aspectos, os cabo-verdianos são dotados de muitas virtudes das quais eu me orgulho e faço parte.
Mas este meu artigo, em nada busca exaltar essas “virtudes” que os cabo-verdianos possuem, mas, sim, chamar atenção a um problema cada vez mais expressivo no seio da nossa sociedade e que muitos recusam-se a ver, a comentar – talvez por acharem irrelevante: o racismo explícito dos cabo-verdianos.
Quando abordo este assunto com alguém, seja na rua, numa conversa aberta e descontraída com um amigo, num debate, ou em qualquer outra circunstância, as pessoas tendem a se desviar do assunto. Fogem com a desculpa “mal dada” de que não entendem bem daquilo que estou falar, ou que preferem não comentar por N razões – quase sempre culpam ” a sociedade”, como se dela não fizessem parte – … outros até fingem que se importam com assunto concordando com cada palavra que digo, sem nenhum tipo de argumentação.
É triste, ver que numa geração destas, onde grande parte dos jovens – que constituem a maioria no nosso país – têm acesso à escola, a grandes tecnologias e afins, continuam com o pensamento oco e deprimente em relação à própria África, em relação à pele negra, em particular.
Nós somos um povo que surgiu do colonialismo que deixou marcas profundas em nós. Marcas essas que dificilmente serão apagadas do nosso consciente. Após mais de 500 anos de dominação colonial, sujeitos a todo o tipo de tratamento atroz, juntamente com os nossos demais irmãos africanos, os cabo-verdianos continuam a exaltar os “brancos”, como se eles fossem a raça “superior”. E para os nossos irmãos africanos – com os quais suportamos toda a opressão do colonialismo, reservamos apenas o desprezo.
Um “berdiano” sente-se honrado por falar com um “branco”. Sente-se, por vezes, superior ao outro, apenas pelo simples facto de ter estado em contacto com este. Falar a língua então, é o supremo. Já, com um “negro” o cabo-verdiano evita ser visto.
Um “branco” ao sentir-se mal disposto no meio da rua, é rapidamente acudido por um cabo-verdiano que se prontifica de imediato a ajudar em todos os sentidos. Com o “negro” a reacção pode ser ao contrário.
O “branco”, na nossa sociedade”, é visto como um ser inteligente e algo que, para o meu povo, não compõe o leque de “atributos” de um “negro”, infelizmente. O “negro” nunca vai passar de um pobre coitado.
E os atendimentos públicos?? Nem é preciso falar muito… a diferença de tratamento para com um “branco” em relação a um “negro” salta logo à vista. O modo de falar, o tom de voz, muda de um para outro com a maior facilidade e descaramento.
Somos mais atenciosos, quando de um “branco” se trata. Somos impacientes quando de um “negro” se trata. E assim vamos construindo uma sociedade hipócrita e medíocre…
Quando falo deste assunto, umas das primeiras coisas que me vem à cabeça é a palavra “mandjaku”. É que, em Cabo Verde, basta se ser da África – isto porque os cabo-verdianos não se consideram africanos – para ser um “mandjaku”, mesmo que não o seja. O “mandjaku”, ao contrário daquilo que realmente significa, é usado de forma pejorativa pelos “berdianos”, para “identificar” esses nossos irmãos africanos.
Por isso, não posso dar continuidade a esse artigo sem antes explicar – para os que não sabem – o que significa “mandjaku”.
Manjaco é o nome de um povo que habita regiões da Guiné-Bissau, do Senegal e da Gâmbia. Vivem, principalmente, nas margens dos rios Geba e Cacheu (VIDE CACHEU). São um povo que gosta de viajar, não gostam de ficar muito tempo no mesmo lugar.
Este tipo de preconceito descarado, podemos verificar com mais acentuação, no que tange aos imigrantes da costa africana em nosso país. Sim… a maioria destes são guineenses e senegaleses… mas nem todos são manjacos. Quando tento explicar isto, as pessoas tentam “do-m k dede na odje” com a famosa desculpa que os cabo-verdianos os chamam “mandjakus” apenas porque não sabem de onde são e que fica mais fácil assim identificá-los. Uma parte, uma ínfima parte dos cabo-verdianos, dizem “mandjaku” sem preconceito algum. Mas, sejamos honestos. A maioria assim os chamam de forma a os inferiorizar.
Todos sabemos que para a grande parte da sociedade cabo-verdiana, “mandjaku” é sinónimo de “pretu ki ben di kunfins di África“. Qualquer “negrão” em Cabo Verde é confundido com um “mandjaku”.
Há dias, uma pessoa muito próxima disse-me que o seu filho de quatro anos chegou em casa e disse assim: “mamá, eu tenho um colega no jardim que é manjaco“. E a mãe – que sabe muito bem o que é um manjaco – virou-se para o filho, com curiosidade, e disse: “E como sabes que ele é um manjaco?“. Com que o menino de apenas quatro anos responde: “Ah, é porque ele é preto”. Esta é uma criança que até aquele dia, nem sabia distinguir um “preto” de um “branco”. E quem o ensinou?? Um coleguinha do jardim, que provavelmente aprendeu em casa, na rua, ou com outro colega, outra criança. Para verem o nível de ignorância a que expomos os nossos pequenos.
E há quem saiba da sua ignorância, mas prefere mantê-la para poder transmiti-la aos seus filhos, aos filhos dos outros, como se de um assunto banal se tratasse.
Passamos a vida a humilhar os demais africanos, sem um motivo contundente só por causa da sua cor da pele, como se os “berdianos” fossem brancos europeus e como se não fossem africanos. Aos desinformados, Cabo Verde faz parte da África, quer queiram, quer não.
Por falar em europeus, não poderia ficar sem falar da ilha do Sal, onde este tipo de comportamento é notório – e digo isto com a maior das certezas porque vivi lá o tempo suficiente para reparar nisto, embora as pessoas acreditem que no Sal este tipo de comportamento é menos acentuado do que nas outras ilhas ou que simplesmente não existe. Existe sim!
No Sal, para quem nunca teve a oportunidade de visitar, grande parte dos comerciantes são os referidos imigrantes africanos que “comem o pão que o diabo amassou” para poder ter um tostão para enviar aos familiares em suas terras que dependem deles para sobreviver (mas os cabo-verdianos não sabem disso porque simplesmente não se importam… se fosse com um “branco”…); e tem também os italianos que escolheram o arquipélago, propriamente o Sal, para fazerem as suas vidas. A maioria destes podemos encontrar na cidade turística de Santa Maria. Os chamados “mandjakus”, na sua maioria, têm pequenos ateliers, onde expõem as suas pinturas e outras artes plásticas; os italianos, por sua vez, são conhecidos pelos seus bares, restaurantes, pizzarias, etc.
Para vender os seus produtos, estes imigrantes da costa africana, saem às ruas e pedem que as pessoas (principalmente os turistas) entrem em suas lojas para comprar um produto. Acredito que para muitos, isto seja até um pouco constrangedor porque muitos deles pegam nas mãos das pessoas e quase que os “obrigam” a entrar para comprar. Acaba por ser um pouco invasivo.
Até aqui, ok… eu também ficaria meio desconfortável. Mas há incontáveis casos de italianos e de outros “brancos” que fazem pior, com seus comentários machistas, insultuosos e retrogradas, comportamentos infelizes e recebem um grande sorriso. A alegria é tanta quando são abordados um por “branco” que só lhes falta beijar-lhe os pés e cantar o “hula hula”.
E o quê que um o dito “mandjaku” recebe, mesmo quando é simpático e não é invasivo?? O quê?? Nada. Apenas é ignorado. Eles não recebem um bom dia, boa tarde e muito menos boa noite. Se precisam de uma informação, o mesmo acontece. IGNORADOS, em todos os sórdidos sentidos, sejam eles residentes, sejam eles apenas turistas que pretendem passar suas merecidas férias em nosso país… eles são AFRICANOS e NEGROS, por isso…
Um “branco”, seja ele residente ou apenas um turista, quando pede alguma informação para um cabo-verdiano, é tratado com pompa e circunstância… há casos em que as pessoas até se oferecem para guiá-los até o lugar pretendido. O “branco” dá um “bom dia” e é respondido com um sorriso até a orelha. Os dentes amarelos tornam-se brancos como que num passo de mágica. E assim as coisas acontecem, não só naquela cidade turística, mas em todo o país, e as pessoas fecham os olhos e preferem acreditar que “tá favorável”.
Analisemos a seguinte situação: aqui, em Cabo Verde, quando vemos uma cabo-verdiana de mãos dadas com um “branco”, quase que passa despercebido, e as pessoas aplaudem e dizem “sim, senhora. Esta já está arrumada na vida. Faz ela muito bem”. Há quem comece logo a imaginar a cara dos futuros filhos do “peculiar casal”, que ainda nem pensa em juntar os trapos. “Cabelos loiros, finos, olhos azuis”, mesmo que o coitado nem olhos azuis tenha.
Começam a imaginar a casa que o casal vai construir, a decoração… as viagens. E nem se preocupam em saber da situação financeira do “branco”. O gajo pode estar a morrer de fome, mas desde que seja “branco” é rico… simples como a água.
Agora, analisemos o contrário: uma “branca” de mãos dadas com o denominado “mandjaku”. Uuuuiii que escândalo. Todos comentam: “credo, coitada. Com aquele ‘preton’. Que nojo. O quê que fez esta mulher linda, branca e rica deixar o seu país para vir para este fim de mundo namorar com um gajo como aquele. ‘Preton d merda'”. Não se espantem! É a mais pura verdade. Vamos nos despir de certos tabus e certas hipocrisias com os quais estamos habituados. Fartei-me de ouvir comentários do género.
E vejam isto: segundo um estudo financiado pela União Europeia, em Cabo Verde, os africanos são os que mais sofrem com a discriminação. De acordo com os dados apresentados no documento, esta marginalização é de natureza racial e xenófoba (83%).
Mas o pior de todos, com certeza, é o racismo “mais que explicito” para com os próprios cabo-verdianos “negros”. E isso é possível perceber, principalmente, com o “badiu” que é, muitas vezes, insultado e inferiorizado pelos “demais cabo-verdianos” que se sentem superiores a este. Neste caso, não poderia ficar sem falar de uma boa parte dos sãovicentinos – não que sejam os únicos, pelo contrário – mas são os que mais demonstram “publicamente”, se assim posso dizer.
O sãovicentino (nem todos, pois não há regra sem exceção) tem um sério problema com o “badiu”. Porquê? O “badiu” foi aquele que mais preservou, até agora, as nossas raízes africanas. O “badiu” é, na sua maioria, de pele negra. E claro, há também outras causas que podemos encontrar na história, como a eterna insatisfação dos sãovicentinos pelo facto da capital do país não ter sido Mindelo.
Mas o problema, para o cabo-verdiano, está em África… na África negra. O mesmo cenário com o “mandjaku”, repete-se, parcialmente, com o “badiu”.
O chineses, talvez, são a única “raça branca” discriminada no nosso arquipélago, chamado por muitos de “paraíso”. “Porcos”, “selvagens”, “brankos di merda”. Já aqui, não é a questão da pele…acredito que seja por outros motivos, por mim desconhecidos.
Agora, atenção!! Os cabo-verdianos quando se sentem vitimas do racismo… não há quem os aguente.
O nível de ignorância do “berdiano”, por vezes, é tão grande que, para a maioria, em África só encontramos negros. No entanto, fazemos parte deste tão grandioso continente berço. Desprezamos esta nossa herança, desprezamos tudo isto, só para não termos o “azar” de sermos chamados africanos e vistos como “negros” quando, na realidade, existem mais cabo-verdianos negros do que brancos.
E sabem o que torna tudo isto mais deprimente?? É que nós, cabo-verdianos, somos, também, africanos. Mas recusamos a nossa identidade, como se fosse “descartável”. E “descartamos” aqueles que ajudaram a construir a nossa história, a nossa identidade.
Recusamos admitir quem realmente somos: AFRICANOS… NEGROS!!
Mas aí, questiono-me: não terá o Governo a sua quota-parte de responsabilidade? Tomemos como exemplo as nossas escolas, onde as crianças e adolescentes têm mais contacto com a cultura e história europeia do que com a africana. O ensino da história cabo-verdiana já é deficiente, imaginem então do resto de África. É como se não fizéssemos parte de nada que envolva este continente. E as consequências, são visíveis. Os cabo-verdianos não têm o mínimo interesse pela história do continente do qual fazem parte.
… já dizia um conhecido meu: “o cabo-verdiano só se torna africano quando vê-se de frente com um prato de cachupa ou quando fantasia-se de ‘mandinga‘. Depois disso é europeu”.